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Redução do IRPJ e da CSLL sobre o lucro presumido para a área da saúde, definida pelo STJ, em 2009, continua a ser desrespeitada pela Receita Federal 

 

AUTOR: PERISSON ANDRADE**

As clínicas médicas, odontológicas e de outros profissionais de saúde, além dos laboratórios de diagnóstico, se constituídos sob a forma de sociedades empresárias (LTDA.) e se atenderem às exigências da ANVISA (laudos da vigilância sanitária em ordem e em dia), obtiveram, em 2009, o reconhecimento judicial, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), do seu direito de aproveitamento de alíquotas reduzidas para a apuração das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL sobre o seu lucro presumido, exceto em relação a suas simples consultas e serviços administrativos.

 

Com efeito, conforme previsto nos artigos 15, §1º, inciso III, alínea "a", e 20, da Lei nº 9.249/1995 (com as suas respectivas alterações, em 2008, as quais ampliaram os serviços beneficiados), e segundo a interpretação de tais normas pelo STJ, enquanto os prestadores de serviços em geral são tributados com base em 32% de suas receitas brutas, as clínicas e laboratórios médicos, odontológicos, etc., que preencham aos requisitos acima mencionados, sempre tiveram direito a pagar esses tributos sobre bases de cálculo muito menores, sendo estas de 8% para o IRPJ e de 12% para a CSLL.

 

Ou seja, valores praticamente 75% menores do que aquilo que é exigido até hoje pela Receita Federal. As atividades abrangidas por essa tributação diferenciada, conforme previsão, são: “serviços hospitalares e de auxílio diagnóstico e terapia, patologia clínica, imagenologia, anatomia patológica e citopatologia, medicina nuclear e análises e patologias clínicas”. Estão abrangidos assim e podem se beneficiar das alíquotas diferenciadas de base de cálculo os mais variados ramos da Medicina e todos serviços de profissionais que atuam em alguma das mais de 50 especialidades médicas atualmente reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução nº 2.162/2017), inclusive fisioterapia, e também clínicas de cirurgiões dentistas, regulados pelo Conselho Federal de Odontologia.

 

A pacificação desse entendimento sobre o real sentido da expressão “serviços hospitalares” contida na lei, ocorreu no julgamento, pelo Superior Tribunal de Justiça, do Tema repetitivo nº 217/STJ (REsp nº 1.116.399), vinculante para todo o Poder Judiciário do Brasil e também à Receita Federal. Com efeito, nesse leading case, o STJ, maior e último intérprete do sentido da lei federal infraconstitucional, fixou, em resumo, o seguinte entendimento sobre a matéria:

 

A objetividade do benefício fiscal, em vez de sua subjetividade, como interpretava a Receita Federal.

 

Ou seja, o legislador, quando da edição de tais comandos legais, não fez uma consideração subjetiva, ou seja, não visou beneficiar um determinado sujeito, prestador de serviços de saúde, quais sejam, os hospitais, assim considerados em função de suas maiores e mais complexas estruturas físicas.  O legislador, segundo o STJ, pelo contrário, independentemente do tamanho ou da complexidade da estrutura do prestador de serviço de saúde, visou realmente reduzir a carga tributária incidente sobre todos os serviços de apoio à saúde. Essa interpretação da lei, pelo seu intérprete máximo, o STJ, foi considerada a única compatível e coerente com a garantia constitucional de acesso à saúde, insculpida no artigo 6º da CF/88, e teve como objetivo maior justamente estimular, via redução legal do ônus tributário, o exercício e desenvolvimento dessa atividade (prestação de serviços de saúde), por particulares, para o melhor e o mais abrangente possível atendimento das necessidades da população, destinatária e beneficiária final de tal estímulo legal.

 

Essa objetividade e o merecimento ao benefício fiscal não têm qualquer relação com a estrutura do prestador de serviço de apoio à saúde, podendo ser aproveitada, inclusive, para aqueles que se utilizem da estrutura física de terceiros e até para aqueles que realizem procedimentos/serviços fora de seu estabelecimento, como, por exemplo, os serviços de home care.

 

As únicas duas condições, previstas na lei, para a fruição dos benefícios fiscais pelas prestadoras de serviços de saúde são que as mesmas sejam

 

1) organizadas sob a forma de sociedades empresárias; e que,.

2) atendam às exigências da ANVISA (laudos da vigilância sanitária em ordem e em dia)

 

Ocorre, entretanto, que a Receita Federal, por meio de suas instruções normativas e de suas interpretações veiculadas por meio de respostas de sua Consultoria Tributária, vem, reiteradamente, há mais de 14 anos, criando embaraços e novas condições (não previstas na lei e não autorizadas por qualquer interpretação razoável que se retire do leading case mencionado) para a fruição, pelos efetivos destinatários, dos benefícios legais já exaustivamente examinados e decididos por aquela Corte Superior.  

 

E isso por meio da exclusão, na sua interpretação ilegal e torta (e mais ainda: recalcitrante e consequentemente imoral), de contribuintes que, na sua visão, possuem estrutura física reduzida. A Receita Federal tenta, assim, verdadeiramente requentar a discussão, em desrespeito à coisa julgada e à autoridade das decisões do STJ, já por ela perdida há 14 anos, sob várias e sempre renovadas criativas formas. Ora tentando dizer que somente estará protegida e beneficiada a prestação de serviços realizada por sociedades empresárias “de direito e de fato”, ou seja, na sua visão, que contratem médicos ou outros profissionais (que não somente auxiliares) para executar os serviços de saúde, desqualificando, assim, as sociedades onde os serviços sejam executados pelos próprios sócios (ou seja, em inovação legislativa, com condição não autorizada pela lei); ora se referindo à suposta necessidade das sociedades beneficiadas (como se fossem as sociedades as beneficiárias e não os serviços) possuírem estrutura compatível com norma regulamentadora do Conselho Federal de Medicina, quando este alude somente aos requisitos para a consideração de diversos tipos de estabelecimentos de saúde, não tendo qualquer conteúdo fiscal essa regulamentação, quando é certo, ademais, que a lei fiscal não fez qualquer alusão à suposta necessidade de remissão às regulamentações de tal Conselho, somente exigindo, ao contrário, que a sociedade prestadora de serviços esteja devidamente regular frente à ANVISA, além de se organizar na forma de sociedade empresária.

 

Ou seja, mesmo após tanto tempo, e talvez torcendo para o mesmo embotar os sentidos dos intérpretes da lei e da jurisprudência, a Receita traz à baila, em pleno ano de 2023, a mesma e requentada discussão e interpretação já refutada pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, no precedente acima referido (somente lhe emprestando coloridos novos, para tentar, por via transversa, burlar as conclusões com as quais não se conforma até hoje), onde ficou claríssimo que o benefício legal não é subjetivo, ou seja, independe da estrutura do contribuinte, o qual somente precisa estar quites com a Anvisa e estar organizado sob a forma de sociedade empresária. Quisesse o legislador fosse condicionado o benefício a qualquer outro critério subjetivo, o teria feito expressamente ou, quando muito, afetaria a matéria à regulamentação do ente arrecadante, para essa finalidade, o que não fez, justamente porque, como interpretado pelo STJ, o benefício é objetivo e destinado à desoneração fiscal dos serviços, independentemente de quem os preste, desde que atendidas às únicas condições subjetivas mencionadas pela própria norma, e somente estas, sob pena de malferimento do objetivo do legislador (ampliado em 2008, com as duas únicas ressalvas/condições já referidas, na verdade de cunho antifraude), que foi o de assegurar, o mais amplamente possível, a garantia constitucional de acesso à saúde, insculpida no artigo 6º, da Magna Carta.

 

Essa verdadeira teimosia da Receita Federal, além da permanente litigiosidade do tema, mesmo após 14 anos, com nítidos e óbvios prejuízos ao sistema de Justiça, e em especial à segurança jurídica e à consequente justa expectativa dos jurisdicionados em relação às ordens cogentes do Poder Judiciário e o seu necessário respeito, principalmente pela própria Administração Fiscal, mostra-se, assim, contrária não só à legalidade e à garantia do sistema de pesos e contrapesos e de separação e equilíbrio entre os poderes da República, mas principalmente ao princípio máximo de qualquer sistema jurídico democrático, qual seja, o da moralidade administrativa, ao qual todos os administradores públicos estão jungidos, e não somente nas palavras, mas principalmente em suas ações.

 

Realmente, o referido aparelho de arrecadação, a despeito de recentes manifestações públicas governamentais, de suposta busca de uma menor litigiosidade fiscal e de desejos de inauguração de um novo tipo de relacionamento com os contribuintes, continua impondo, à força (com prejuízo à segurança jurídica e à vontade do povo, manifestada pela lei, fruto do debate e manifestação dos seus representantes democraticamente eleitos), a sua contrariada vontade e, por meio transverso, desrespeitando a ordem judicial cogente e emanada erga omnes pelo Superior Tribunal de Justiça, em seu Tema Repetitivo referido. E dessa forma inviabiliza ou ao menos desestimula (para um público sabidamente pouco afeito à contenda tributária com o governo) a utilização daquilo que a lei e a Justiça asseguraram fosse devidamente aproveitado, por todos que se prestam a realizar a atividade estimulada, para justamente o estímulo da prestação de serviços de saúde, pelo maior número de empreendedores, atividade esta cuja essencialidade foi mais fortemente notada por todos nós, durante a mais recente crise sanitária que vivenciamos, e para a qual, aliás, se criou essa norma finalística e programática fiscal em exame.

 

Dessa forma, diante do contínuo e perene desrespeito, pela Receita Federal, do quanto assegurado pelo lei, devidamente já interpretado pelo Poder Judiciário, é ainda hoje preciso requerer judicialmente, em processo com pedido de liminar, ordem judicial que assegure, imediatamente, qualquer clínica que preencha os requisitos acima, a pagar os seus tributos sobre o lucro presumido com base de cálculo apurada sobre os percentuais de 8% (IRPJ) e de 12% (CSLL), em vez dos 32% aplicáveis a prestadores de serviços em geral, como exige a Receita Federal (aproximadamente 75% menos). Na mesma ação judicial, pode ser requerida também a devolução (mediante a compensação de créditos com tributos vincendos ou em espécie) dos valores já pagos indevidamente no passado, relativamente aos 5 anos anteriores ao ajuizamento da ação, tudo atualizado pela taxa SELIC. A cada mês, prescreve mais uma parcela de seus recolhimentos indevidos.

 

** Perisson Andrade

Mestre em Direito Internacional Tributário pelo IBDT. Especializado em Legislação Americana pela George Washington University Law School e pelo IUSLAW Institute, em Direito Societário pelo Ibmec-SP e em Direito Tributário pela FGV.  Advogado tributarista e corporativo e profissional de compliance com certificação internacional - CCEP-I (Certified Compliance and Ethics Professional - Internacional). Sócio Fundador do escritório Périsson Andrade, Massaro e Salvaterra Advogados.